Ser mulher, trabalhadora e viver no Brasil de Bolsonaro. É possível ter saúde mental?
Podemos começar combinando que levantar às 5h da manhã e chamar de “rotina de cuidado” é privilégio de um certo grupo, certo?
É Setembro Amarelo e parece que todo mundo agora fala de saúde mental. Não que o tema não seja pertinente, pelo contrário, esta é a primeira de uma série de matérias que vamos tratar ao longo desse mês.
No entanto, não adianta chamar de “mimimi” o ano inteiro e levantar a bandeira agora ou achar que as saídas são apenas individuais — em sessões de yoga, reiki, uma skincare com produtos impagáveis e terapias holísticas que custam mais que a inflação da gasolina.
Saber se vai conseguir pagar a conta de luz, do aluguel, do gás, do supermercado, quem vai ficar com as crias influenciam na saúde mental das pessoas e, vejam só, a solução para isso é coletiva –não individual.
Não importa se a justificativa é uma “baixa vibração de energia” ou “falta de Deus no coração”, individualizar e responsabilizar as próprias pessoas por “não estarem bem”, como se elas estivessem fora do que é considerado normal e padrão, é um fenômeno bastante recorrente.
Jacqueline Gnoatto, psicóloga e educadora social do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, bairro do extremo leste da capital paulista, ressalta:
“Existe uma enorme tendência de individualizar e patologizar a pobreza — não compreendendo o quanto o capital e a exploração das trabalhadoras influenciam no adoecimento coletivo das mulheres”
O ultraliberalismo insiste em atribuir os problemas de saúde mental apenas à esfera individual, causando esse fenômeno de mercantilização da espiritualidade e da autoestima. Ao longo das matérias, vamos buscar entender como chegamos ao menor índice de felicidade média em 15 anos, segundo estudo da FGV Social, centro de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas.
Somos o país com a maior taxa de transtorno de ansiedade no mundo, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde). Enquanto 3,6% da população mundial sofre de ansiedade; no Brasil, o transtorno atinge 9,3% da população, segundo estimativa feita em 2017 pela entidade internacional.
Do começo
Durante a pandemia da Covid-19, as mulheres foram as mais afetadas psicologicamente, apresentando 40,5% de sintomas de depressão, 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse, segundo estudo conduzido pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
Fatores concretos para isso não faltam: elas são as mais afetadas pela fome, com o maior nível de sobrecarga de cuidados, as primeiras a saírem do mercado de trabalho e as mais expostas à violência. Se elas chefiam um lar, é sobre suas famílias que a crise econômica vai atingir mais rapidamente. No caso das mulheres negras, a situação piora com a sobreposição do racismo estrutural, atingindo suas famílias, seus filhos e filhas e fechando ainda mais as portas do mercado de trabalho.
“O isolamento [derivado da crise sanitária] não é só físico, porque muitas pessoas negras e pobres não puderam fazê-lo, mas esse isolamento enquanto ausência do Estado em suas vidas e a reprodução da violência dentro de suas casas tiveram impacto significativo na saúde mental das mulheres”, afirmou a psicóloga.
A questão do desemprego — que desencadeia outras situações de vulnerabilidade como a insegurança alimentar e o risco de despejo — é um dos principais fatores que afetam a saúde psicológica das trabalhadoras, conforme estudo da Pesquisa Nacional de Saúde, principalmente quando se trata de depressão. Segundo a pesquisa, a dupla jornada, com trabalho dentro e fora de casa, faz com que os índices de mulheres que sofrem por causa da doença sejam ainda maiores. Enquanto para elas as médias ficaram por volta dos 10%, para os homens as médias ficaram por volta dos 3%. Os fatores incluem não só a preocupação com o trabalho, mas também com relação à opressão de gênero.
“O que você faz?” A produtividade na construção do sujeito
Quando conhecemos alguém, a primeira pergunta, além do nome, é ‘o que você faz’? A resposta sempre diz respeito à localização da pessoa nas relações produtivas.
Definimos o outro e, consequentemente, a nós mesmos pelo lugar que ocupamos no mercado de trabalho.
Essa lógica explica, por exemplo, porque é comum mães ouvirem “você não faz nada o dia inteiro, só cuida das crianças” ou você “só cuida da casa”. Apesar de serem fundamentais na reprodução da força de trabalho, é um tipo de trabalho que “não aparece no PIB”.
Ou seja, quando as pessoas não estão inseridas no mercado de trabalho, a saber, desempregadas ou desalentadas, elas enfrentam um processo de desvalorização social, conforme aponta Pesquisadores da Universidade do Vale do Rio dos Sino. Pois não se trata apenas das perdas materiais, ainda que elas sejam importantes, mas também da impossibilidade de expressar-se e ‘deixar sua marca no mundo’.
Especialistas afirmam que “estar empregado” equivale a “ser produtivo” e, no sistema capitalista, esse é o principal eixo de construção da própria identidade social.
No caso das trabalhadoras desempregadas, o quadro se torna ainda mais profundo. Não apenas a questão da construção da identidade e suas derivações — a crise econômica pode levar a quadros que a impedem sair de uma situação de violência, por exemplo. E até de tirar seus filhos e filhas de um lar violento.
As pesquisadoras da FioCruz Elaine Cristina Vieira de Magalhães e Luciana Gomes reuniram e analisaram diversos artigos publicados sobre desemprego e saúde mental. Os sentimentos levantados que mais afetam trabalhadores e trabalhadoras desempregados foram:
O medo, a insegurança, a baixa autoestima, o desespero, a falta de esperança, a tristeza, a inutilidade, o desamparo, a desorientação, a revolta, a frustração, a decepção, o fracasso, a impotência, o desânimo, a dependência, a angústia, a desvalorização, a improdutividade, a incapacidade, a culpa, a vergonha e a humilhação.
“Tivemos um número grande de pessoas que trouxeram esse sintoma de ansiedade e depressão, por não ter dinheiro para subsidiar o mínimo de suas vidas. Além de ter que lidar com a morte de muitos entes queridos, não só pela crise sanitária, mas também pela violência que aumenta nas periferias — tanto a policial, quanto a de falta de política pública para mulheres e suas famílias”, apontou a psicóloga.
Ana Clara, Agência Todas
Fonte: pt.org.br