720 milhões de famintos, por José Graziano
O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no mundo, mais conhecido por SOFI, sigla em inglês para State of Food Security and Nutrition, é de longe a publicação mais importante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). O último relatório, relativo a 2020, foi divulgado em 12 de julho, em Nova York, durante o fórum de alto nível político das Nações Unidas, que é a reunião mais importante que precede a reunião da Assembleia Geral da ONU em setembro.
O SOFI passou a ser divulgado nessa reunião de julho nos últimos três anos. Tive a oportunidade de fazer a mudança em 2019, num dos meus últimos atos ainda como diretor-geral da FAO. Antes, o relatório era divulgado apenas em 16 de outubro, no Dia Mundial da Alimentação. O relatório é uma publicação de cinco agências internacionais do sistema ONU. Liderada pela FAO, participam também o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), o Programa Mundial de Alimentos (PMA), todas sediadas em Roma. Duas outras organizações das Nações Unidas também assinam a publicação: a UNICEF, órgão para a infância, e a OMS, Organização Mundial da Saúde.
Bem antes da pandemia começar, já se sabia que o mundo caminhava na contramão da erradicação da fome e do desenvolvimento de uma agricultura sustentável para 2030. Desde 2014, ironicamente o ano que os países se puseram de acordo para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), em substituição aos objetivos do milênio (ODM), os indicadores da segurança alimentar e nutricional começaram a piorar em função da crise econômica que se enfrentava. É esse o fator principal do aumento da insegurança alimentar ao lado dos conflitos armados (gráfico acima).
O ano de 2021 também se destaca um terceiro ponto, o impacto das mudanças climáticas na insegurança alimentar. Isso obviamente varia de região para região. Na América Latina, por exemplo, onde os conflitos armados não são importantes, como nos países do Oriente Médio, o fator que explica o aumento da fome é a recessão econômica. Mas áreas como a sub-região andina foram duramente afetadas pelas mudanças climáticas, como também ocorre na costa lesta da África — países como Etiópia, Somália que são já duramente castigados pelas secas prolongadas e altas temperaturas (gráfico na próxima página).
A pergunta que o SOFI procura responder este ano é: como o mundo chegou nesse ponto? Os números apresentados mostram que o principal indicador de prevalência de subnutrição, indicado pela sigla em inglês PoU (Prevalence of Unorishment), subiu de 8,4% para cerca de 9,9%. Isso leva a estimativa de quase 10% da população mundial, um número global absoluto que oscila em torno de 720 milhões de pessoas no mundo, passando fome. Significa quase 120 milhões de pessoas sem comida no ano passado em relação a 2019, antes da pandemia.
Tal aumento não é atribuído apenas à crise sanitária da Covid porque também nesse período de 2020 aumentaram os conflitos, particularmente do Oriente Médio e na África. E também cresceu o impacto das mudanças climáticas em várias regiões do planeta, inclusive na Ásia, a região mais populosa do mundo.
O indicador mais importante para a América Latina e Caribe — e, portanto, também para o Brasil — é o da insegurança alimentar moderada ou grave, com base na escala de experiência em segurança alimentar (FIES). Segundo o relatório, em 2020, o ano em que a pandemia se espalhou, houve um aumento da insegurança alimentar moderada e grave numa proporção quase igual ao aumento acumulado dos últimos 5 anos.
Ou seja, a insegurança alimentar moderada e grave saltou para 30%, quase que 1 de cada 3 pessoas no mundo não tiveram acesso à alimentação adequada em 2020. É um aumento de 320 milhões de pessoas em apenas um ano.
A insegurança alimentar grave afetou quase 40% dessas pessoas: 920 milhões de pessoas no mundo enfrentam insegurança alimentar em níveis graves, o que corresponde a 12% da população mundial. São quase 150 milhões de pessoas a mais das que sofriam insegurança alimentar grave em 2020 em relação a 2019. São aqueles que estão passando fome.
É interessante observar que os aumentos da insegurança alimentar moderada ou grave entre 2019 e 2020 foram mais acentuados na América latina e no Caribe. Houve um aumento de 9 pontos percentuais. Enquanto na África, que vem em seguida, houve um aumento de apenas 5 pontos percentuais e apenas 3% na Ásia.
Mesmo na América do Norte e na Europa, onde se encontram as menores taxas de insegurança alimentar no mundo, a prevalência da segurança alimentar aumentou pela primeira vez desde que a FAO começou a coletar os dados da FIES em 2014.
Neste ano também, o Estado da Segurança Alimentar e Nutricional procura indicar o número de pessoas que não podem pagar uma dieta saudável e o custo. Como resultado do alto preço das dietas saudáveis, juntamente com altos índices de desigualdade de renda, estima-se que cerca de 3 bilhões de pessoas não puderam pagar uma dieta saudável em 2019 — não foi possível estimar ainda esses valores para 2020.
A maioria vive na Ásia e África, embora uma dieta saudável esteja também fora do alcance de milhões na América Latina. Estima-se que 113 milhões de pessoas na América Latina e Caribe não tiveram acesso ou não puderam pagar por uma dieta saudável em 2019. É uma incongruência com uma região que é a maior exportadora de alimentos do mundo.
As projeções para o pós-pandemia…
Além de apresentar os novos dados para o ano passado, o SOFI 2021 faz também projeções até 2030 quando se pretende atingir a erradicação da fome no mundo. Como já sabíamos antes, isso não será alcançado se não houver uma mudança radical na atual situação de insegurança alimentar e nutricional no mundo.
As projeções indicam que depois do pico de 2020, que atingiu 10% da população mundial passando fome, os números tenderiam a diminuir, chegando a um valor de 660 milhões em 2030. É muita gente! É um número similar ao que nós tínhamos em 2019, antes da pandemia… Ou seja, “business as usual” não vai acabar com a fome e a miséria no planeta!
É interessante notar pelas projeções do SOFI para as diferentes regiões do mundo, praticamente todas vão diminuir ligeiramente a fome nos próximos 10 anos, com exceção da África, onde a projeção para 2030 é de um aumento do número total em relação a esse pico em 2020.
A África é considerada uma região que vai se igualar ao número de famintos existentes na Ásia no final da década, com 300 milhões de pessoas em cada uma dessas regiões, embora a população na Ásia seja muito superior à população africana.
Segundo o SOFI, a principal razão desse insucesso de erradicação ou pelo menos de diminuição da fome até 2030 — ou ainda uma melhoria dos índices de nutrição — se deve à maior desigualdade no acesso aos alimentos. E isso tem muito a ver com a piora na concentração de renda nos países pobres e de renda média.
Regiões inteiras como a América Latina, particularmente na América do Sul a principal causa do aumento da fome é a questão econômica, não é a de falta de produção de alimentos. Pelo contrário. Há um grande excedente de alimentos produzidos, mas os mais pobres não têm acesso porque não podem pagar por uma dieta saudável. Então, não só aumenta a fome, mas paradoxalmente aumenta a obesidade, principalmente de crianças e mulheres em idade reprodutiva.
Segundo o SOFI, globalmente pode se dizer que apenas uns poucos indicadores de nutrição têm melhorado ou terão melhora expressiva no restante da década, a continuarmos com as políticas e os sistemas alimentares existentes. Daí a esperança depositada na Cúpula Mundial da Alimentação que se inicia agora, no final de julho, uma pré-cúpula em Roma, na FAO, e depois será a cúpula em setembro, após a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.
As causas do aumento da insegurança alimentar
Segundo o relatório 2021, a desaceleração econômica no ano passado, agravada pela pandemia da Covid, os conflitos e as mudanças climáticas são os principais fatores causas que estão por trás do aumento recente da fome nos anos recentes e da reversão do progresso que se verificava até 2014. Essa influência adversa dos conflitos, das mudanças climáticas e da desaceleração econômica é agravada pela persistência de altos níveis de desigualdade social e econômica nos países mais pobres e de renda média.
O trabalho da FAO destaca com ênfase que são os países que têm alta concentração da distribuição de renda, aqueles onde mais houve o aumento da fome durante a pandemia. A crise sanitária serviu para ilustrar a importância dessa persistente desigualdade estrutural em nossas sociedades do terceiro mundo.
Além disso, milhões de pessoas também sofrem insegurança alimentar e nutricional porque não podem pagar o custo das dietas saudáveis. Esse é um elemento presente mesmo na sub-região da América do Sul, atualmente o grande celeiro mundial, o grande exportador de carne e grãos para todas as outras regiões do mundo: o alto custo dos alimentos saudáveis. De modo que mais de 113 milhões de pessoas na região não podem pagar por uma alimentação de melhor qualidade.
Em resumo, a pobreza e a desigualdade da distribuição da renda são os fatores estruturais subjacentes que amplificam o impacto negativo dos outros fatores. Ou seja, onde há mudanças climáticas que afetam a produção de alimentos, é a pobreza e a desigualdade da distribuição da renda que tornam as coisas ainda piores.
Como já havia sido destacado nas edições anteriores, o SOFI 2021 reafirma que a “pobreza e desigualdade são as causas estruturais subjacentes da insegurança alimentar e da desnutrição em todas as suas formas, que amplificam os impactos negativos dos impulsionadores globais dos conflitos e mudanças climáticas”. A pobreza tem um impacto negativo na qualidade nutricional das dietas. Sem surpresa, dietas saudáveis são inacessíveis para os pobres em todas as regiões do mundo.
“A insegurança alimentar e a desnutrição em todas as suas formas são agravadas por altos e persistentes níveis de desigualdade. A desigualdade de renda, em particular, aumenta a probabilidade de insegurança alimentar — especialmente para grupos socialmente excluídos e marginalizados — e diminui o efeito positivo de qualquer crescimento econômico na segurança alimentar individual”, diz o texto.
Vulnerabilidades estruturais, incluindo desigualdades relacionadas a gênero, juventude, etnia, povos indígenas e pessoas com deficiência, tendem a exacerbar a pobreza, a insegurança alimentar e a desnutrição durante os períodos de desaceleração e desaceleração econômica ou após conflitos e desastres relacionados ao clima. Além disso , esses níveis de desigualdade estão sendo acelerados pela pandemia de Covid-19”.
O que fazer?
O SOFI aborda também o que é preciso fazer para transformar os sistemas alimentares atuais de modo a garantir segurança alimentar e nutricional a todos e também o acesso a dietas saudáveis para todos e aponta seis caminhos através dos quais podem ser transformados para garantir a segurança alimentar e nutricional e acesso a dietas saudáveis:
1. Integração de políticas humanitárias de desenvolvimento e de consolidação da paz nas áreas afetadas por conflitos armados. Essa política de integração humanitária de desenvolvimento e paz tem muita importância nos países africanos e no Oriente Médio.
2. Ampliação da resiliência climática em todos os sistemas alimentares, ou seja, tornar os sistemas agrícolas mais resilientes, isto é, mais resistentes às mudanças climáticas, principalmente às secas.
3. Fortalecimento dos mais vulneráveis, que sofrem mais com as adversidades econômicas, com as políticas de transferência de renda e de melhora na distribuição da renda.
4. Intervenção ao longo das cadeias de abastecimento de alimentos para reduzir o custo de alimentos saudáveis, de alimentos nutritivos. Basicamente transferindo subsídios que hoje são dados às commodities, que são produtos de exportação para aqueles produtos produzidos localmente, nas proximidades onde vivem as pessoas pela proximidade da agricultura familiar. Então, uma transferência de subsídios da grande produção agroindustrial para a agricultura familiar.
5. Combate à pobreza e à desigualdade, que são estruturais na maioria dos países de ingresso médio e pobres, garantindo que as intervenções sejam mais em prol dos pobres e mais inclusivas.
6. Fortalecimento dos ambientes alimentares e mudança do comportamento do consumidor para promover padrões alimentares com impactos positivos na saúde humana e no meio ambiente.
Há um item muito importante assinalado no SOFI 2021 que é a necessidade de mudança de comportamento do consumidor. Isso é considerado fundamental e implica em intervenção pública nos padrões hoje existentes de propaganda dos alimentos principalmente para crianças e na rotulagem desses alimentos, deixando explícito o conteúdo principalmente do alto teor de açúcar, de sal e de gordura contidos nos alimentos.
Direção errada
A conclusão do SOFI 2021 é de que faltando menos de uma década para 2030, o mundo não está a caminho para acabar com a fome e desnutrição. Estamos, pelo contrário, caminhando na direção errada. O relatório mostra que a desaceleração econômica como consequência das medidas de contenção da Covid em todo o mundo contribuíram muito para um dos maiores aumentos da fome nas últimas décadas, o que afetou quase todos os países de baixa e média renda e pode reverter os poucos ganhos obtidos na nutrição dos últimos anos.
O SOFI 21 alerta ainda que a pandemia da Covid é apenas a ponta do iceberg. O que é mais alarmante é que a crise sanitária expôs as vulnerabilidades que se formavam nos nossos sistemas alimentares nos últimos anos como resultados de importantes fatores como os conflitos, as mudanças climáticas e a desaceleração econômica. Essas são as reais causas e fatores que estão ocorrendo cada vez mais e simultaneamente nos países com interações que comprometem a segurança alimentar e nutricional. Um dos elementos agravantes disso como mostra o relatório é a concentração da renda, principalmente nos países mais pobres e de ingresso médio. Entre eles, os países da América do Sul e o Brasil…
Por falar de Brasil, o relatório apresenta também os novos dados para o país em 2020. Eis o número de pessoas no Brasil em situação de insuficiência alimentar grave ou severa: 3,5% ou 7,5 milhões de pessoas. Quanto à insuficiência alimentar moderada e grave, a FAO aponta um contingente de 23,5% — 49,6 milhões de pessoas. É muita gente passando fome ou comendo mal no Brasil, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo.
José Graziano – Agrônomo, professor e escritor, é ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome no governo Lula (2002-2010) e ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) entre 2012 e 2019.
Artigo publicado na Focus Brasil, da Fundação Perseu Abramo
Fonte: pt.org.br