Merlong Solano: Riqueza extrema e miséria: a tragédia de nosso tempo
Merlong Solano
Deputado Federal PT/PI
Em O Capital no século XXI, Thomas Piketty traça com maestria os caminhos da desigualdade no mundo no que diz respeito à crescente concentração da riqueza. Dentre outras coisas, o autor destaca o fato dos países mais ricos serem também aqueles que apresentam uma renda nacional maior do que seu Produto Interno Bruto, ou seja, países que têm renda nacional maior do que a produção nacional (aquela produção realizada dentro do país). Como isso é possível?
É possível e não é de hoje. Lançando mão dos conhecimentos gerados pela História e pela Economia Política, Piketty afirma: “no total, é possível estimar que as potências europeias detivessem, em 1913, entre um terço e a metade do capital doméstico asiático e africano, e mais de três quartos do capital industrial.” As empresas enviavam todo ano lucros e dividendos para suas matrizes, situadas na Europa. Era assim em 1913, continua sendo assim hoje.
Depois dos mecanismos, hoje anacrônicos, da dominação direta por meio da formação de impérios coloniais, que viabilizavam a transferência direta de renda para as metrópoles, o capital organizou sua teia por meios mais eficazes: o domínio das regras do capital financeiro e da moeda internacional (libra e depois o dólar americano); controle do capital industrial; centralização das pesquisas científicas e tecnológicas e controle sobre processos e patentes. Tudo isso sem esquecer das mentes e dos valores, fortemente influenciados pela indústria da cultura e também pelas agências internacionais de comunicação (todas vinculadas ao grande capital).
Juntos, esses mecanismos garantem a reprodução da organização da economia mundial de modo que permita a alguns países disporem de renda nacional maior do que sua produção nacional. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a renda nacional disponível a cada ano excede em cerca de 2% sua produção. Isso vale também para o Reino Unido e para a França. Já a Alemanha e o Japão recebem de fora, a cada ano, renda equivalente a 3% do que eles produzem lá mesmo.
Em termos percentuais, dois ou três por cento podem parecer pouco. Parece, mas não é. Trata-se de percentual aplicado sobre o PIB dos países, ou seja, no caso dos EUA são 2% de tudo que eles produzem de bens e serviços lá mesmo durante um ano.
Não estamos falando de um fato isolado, que acontece de vez em quando. Não! Essa transferência de renda se dá todo ano. O Reino Unido, por exemplo, recebe essa renda extra desde a Revolução Industrial. Não é à toa que eles podem se dar ao luxo de sustentar a Família Real, apenas pra preservar um símbolo da sua era de ouro, quando o sol nunca se punha no Império Britânico.
Para demonstrar a magnitude dessa transferência, tomo o Brasil como exemplo. Nosso PIB em 2019 foi 7,3 trilhões de reais. Se o Brasil recebesse renda líquida de fora na mesma proporção da Alemanha e Japão, ou seja, 3% do PIB, teríamos tido 219 bilhões de reais a mais naquele ano. O orçamento do Bolsa Família em 2019 foi de 30 bilhões. Teria sido dinheiro suficiente pra financiar um programa de transferência de renda mais amplo e ainda teria sobrado muita grana pra investir em educação, ciência e tecnologia, que em parte explicam o domínio das potências nos dias de hoje.
Procurando refletir sobre o outro lado dessa mesma moeda, lembro o caso da África, onde, segundo Piketty, a transferência de renda para o exterior, na forma de remuneração do capital, é da ordem de 5% do PIB do continente, sendo que em alguns países essa transferência chega a 10%.y Não há dúvida, pois, que parte da pujança das bolsas de Wall Street e Londres, assim como o glamour que cerca a vida dos multibilionários do planeta, inclusive brasileiros, tem os pés bem fincados na fome que teima em mostrar as costelas magras das crianças africanas.
No momento em que a Covid-19 torna mais visíveis as mazelas da desigualdade extrema, temos que colocar à mesa – no âmbito de cada país – medidas destinadas a recuperar a noção de responsabilidade social, sendo então necessário enfrentar as duas maiores mazelas da desigualdade: a riqueza extrema e a miséria.
No Brasil, além de uma contribuição emergencial dos super ricos para o enfretamento dos efeitos da Covid-19, precisamos de uma reforma tributária que tribute as grandes fortunas, os grandes patrimônios; tribute lucros e dividendos; tribute as grandes heranças; e alivie a carga sobre a produção e o consumo, que sacrificam a classe média e, especialmente, os mais pobres.